O Alistamento Eleitoral de Pessoas em Situação de Rua.
Renata Machado Cotta
Vitor Marcelo Aranha Afonso Rodrigues
Desembargadores do Tribunal de Justiça
do Estado do Rio de Janeiro
- Considerações introdutórias
O direito ao sufrágio representa um dos pilares normativos do Estado Democrático de Direito e uma das formas mais evidentes de concretização da cidadania. Todavia, a fruição desse direito, embora universal em sua formulação constitucional, permanece obstaculizada para determinados segmentos sociais — notadamente, a população em situação de rua.
O presente estudo visa refletir, sob perspectiva técnico-jurídica, os fundamentos normativos e jurisprudenciais que viabilizam o exercício do direito ao voto por pessoas que, embora em condição de extrema vulnerabilidade, não podem ser desconsideradas pelo sistema eleitoral. Sustenta-se que o conceito de domicílio eleitoral, em sua formulação jurisprudencial consolidada, é suficientemente abrangente para compreender vínculos não territoriais, mas sociais, afetivos ou assistenciais, nos moldes reconhecidos pela Resolução TSE nº 23.659/2021 e pela Resolução CNJ nº 425/2021.
- O domicílio eleitoral como categoria jurídica autônoma
O art. 42 do Código Eleitoral prevê que o alistamento se dará no domicílio civil do requerente, o que, a princípio, remeteria à concepção tradicional de domicílio como local de residência com ânimo definitivo (art. 70 do Código Civil). Entretanto, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, há décadas, vem construindo interpretação autônoma da noção de domicílio eleitoral, dissociando-a da rigidez do conceito civilista.
A título ilustrativo, citam-se os seguintes precedentes:
“[…] 2. A jurisprudência do Tribunal há muito está consolidada no sentido de que ‘o conceito de domicílio eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e se satisfaz com a demonstração de vínculos políticos, econômicos, sociais ou familiares’ […].”(Ac. de 22.11.2018 no RHC nº 060063459, rel. Min. Admar Gonzaga.)
“[…] Conceito amplo de domicílio eleitoral. 7. O conceito de domicílio eleitoral, previsto no parágrafo único do art. 42 do Código Eleitoral e no art. 23 da Res.-TSE n. 23.659, tem alcance amplo, englobando, além do local de residência ou moradia do eleitor, os locais com vínculo afetivo, familiar, profissional, social, entre outros que sejam suficientes para justificar a escolha daquela localidade. […].”(Ac. de 21/11/2024 na RvE n. 060037608, rel. Min. Floriano de Azevedo Marques.)
“Conceitua‑se domicílio eleitoral como mais elástico que o civil, sendo suficiente vínculo político, social ou afetivo.” (REspe n. 37481, rel. Min. Marco Aurélio, red. Min. Dias Toffoli, 18.02.2014).
“[…] 1. A jurisprudência desta Corte se fixou no sentido de que a demonstração do vínculo político é suficiente, por si só, para atrair o domicílio eleitoral, cujo conceito é mais elástico que o domicílio no Direito Civil […] (Ac. de 8.4.2014 no REspe nº 8551, rel. Min. Luciana Lóssio.)
“[…] Domicílio eleitoral. Conceito elástico. […] 2. O TSE já decidiu que o conceito de domicílio no Direito Eleitoral é mais elástico do que no Direito Civil e satisfaz-se com a demonstração de vínculo político, social ou afetivo. […]”.(Ac. de 5.2.2013 no AgR-AI nº 7286, rel. Min. Nancy Andrighi.)
Importante destacar que o art. 23 da Resolução TSE nº 23.659/2021 codifica tal entendimento jurisprudencial ao afirmar que o domicílio eleitoral poderá ser compreendido como “o local de residência ou aquele com o qual o eleitor mantenha vínculo afetivo, familiar, profissional, comunitário ou de outra natureza que justifique a escolha”. Inclusive a declaração do eleitor ou da eleitora de que se trata de pessoa em situação de rua dispensará a comprovação do domicílio (art. 118, §3º)
Essa diretriz normativa traduz, em termos regulatórios, o entendimento de que o domicílio eleitoral não se esgota no endereço formal ou documental do indivíduo, mas deve ser aferido com base em elementos de vinculação social, aptos a justificar a inscrição em determinada circunscrição.
- O reconhecimento institucional da condição de vulnerabilidade: Resolução CNJ nº 425/2021
A Resolução CNJ nº 425/2021, ao instituir a Política Nacional Judicial de Atenção a Pessoas em Situação de Rua, institui como um dos seus objetivos “assegurar o acesso das pessoas em situação de rua à identificação civil básica e ao alistamento eleitoral” (art. 1º, X).
Como medida para assegurar o acesso à Justiça, inclusive a Eleitoral, a norma determina como uma estratégia de celeridade, inclusão, humanização e desburocratização a “substituição do comprovante de residência por um endereço de referência da rede de proteção social (CRAS, CREAS, Centro Pop, Centro de Acolhida, Casas de Passagem, entre outros), conforme orientação constante da política de Assistência Social …” (art. 8º, VIII)
Tal disposição reafirma a premissa constitucional segundo a qual a titularidade dos direitos políticos não pode ser restringida por obstáculos formais de natureza documental. O Estado, nesse contexto, não apenas reconhece a situação de rua como condição que exige tratamento jurídico específico, mas impõe às instituições a adoção de mecanismos inclusivos que superem as barreiras tradicionais de acesso à cidadania.
- Práticas administrativas e concretização do direito ao voto
O reconhecimento normativo de vínculos não territoriais como aptos à fixação do domicílio eleitoral tem sido instrumentalizado em experiências concretas conduzidas por Tribunais Regionais Eleitorais.
Destaca-se, entre elas, a atuação do CIPop‑Rua, no Rio de Janeiro, que desde 2024 disponibiliza atendimento eleitoral à população em situação de rua com base em endereços de referência de instituições assistenciais ou locais públicos reconhecidos como espaço de convivência ou assistência.
Paralelamente, o PopRuaJud, projeto nacional coordenado pelo CNJ, realiza mutirões interinstitucionais para emissão de documentação e alistamento eleitoral em contextos itinerantes, tendo como critério de territorialidade a existência de vínculo afetivo, social ou institucional com a localidade. Tais ações têm permitido, na prática, a inclusão eleitoral de centenas de cidadãos até então invisibilizados pelo sistema registral.
- A delimitação territorial do exercício do sufrágio
Uma objeção frequentemente suscitada em sede doutrinária e institucional refere-se à definição da zona eleitoral e do município de voto, em razão da ausência de endereço fixo.
A resposta, contudo, decorre da própria racionalidade do sistema: ao aceitar um endereço de referência (abrigo, centro assistencial, CRAS, etc.) como suficiente para caracterização do domicílio eleitoral, a Justiça Eleitoral atribui a esse cidadão a circunscrição geográfica correspondente à localização do ponto referenciado.
Assim, o eleitor será alocado em zona e seção eleitoral dentro do município indicado, com regularidade e legitimidade para participar do pleito local. Tal designação não fere qualquer princípio normativo, tampouco compromete a higidez do cadastro eleitoral, desde que o vínculo seja taticamente reconhecível e juridicamente aceitável.
- Conclusão
A ampliação do conceito de domicílio eleitoral para abarcar situações de vulnerabilidade extrema, como a das pessoas em situação de rua, não representa distorção do sistema normativo, mas sim expressão de sua funcionalidade constitucional. A jurisprudência do TSE, consolidada em precedentes reiterados, bem como os marcos regulamentares da Resolução TSE nº 23.659/2021 e da Resolução CNJ nº 425/2021, conferem densidade normativa e segurança jurídica à atuação institucional voltada à inclusão eleitoral.
Ademais, o título de eleitor, além de instrumento de exercício do sufrágio, constitui requisito formal para acesso a diversos outros direitos — como a obtenção de documentos pessoais, inscrição em programas sociais, matrícula em instituições de ensino e acesso à Defensoria Pública — sendo, portanto, um verdadeiro vetor de reinserção social.
Compete às instituições públicas, em especial à Justiça Eleitoral, assegurar que a ausência de residência fixa não seja obstáculo ao exercício dos direitos políticos, especialmente o alistamento eleitoral. A condição de vulnerabilidade social não afasta a titularidade dos direitos fundamentais, sendo dever do Estado adotar medidas administrativas e normativas que viabilizem sua concretização.
7. Referências Bibliográficas
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